Conteúdo de palestra proferida no “II Encontro Internacional de Especialistas em Endometriose” – Hospital São Luiz – São Paulo, pelo dr. Claudio Basbaum.Minha carreira profissional, tanto no campo da ginecologia quanto no da obstetrícia, tem se pautado pela busca incansável de uma medicina que considera tão importante conhecer a pessoa que tem a doença como a doença que a pessoa tem. Uma medicina atenta às conquistas tecnológicas e científicas, mas jamais esquecida do primado hipocrático da valorização da individualidade do paciente, ou seja, de alguém que espera ansiosamente por ser ouvido e consolado.

Não custa lembrar, principalmente aos colegas mais jovens, que a palavra paciente vem da palavra latina patior, ou seja, aquele que sofre. Cabendo, portanto, ao médico, passar-lhe tranqüilidade e segurança – condições básicas, tanto quanto os medicamentos, para o êxito do tratamento.

É direito do paciente, e nossa obrigação como médicos conscientes do seu papel na sociedade, que o tratemos com total envolvimento, respeitando suas angústias e fraquezas. Procurando, com compaixão, resgatar sua saúde física com dignidade, com qualidade de vida, com elevação da auto-estima. Enfim, dando-lhe aquilo que desejamos quando nós somos os pacientes.

A minha intenção, aqui, é falar sobre o quão terrível pode ser o comprometimento da qualidade de vida das pacientes acometidas pela endometriose. E, ainda, mostrar uma situação, infelizmente comum, que é o sério agravamento do quadro provocado pela demora de se fazer um diagnóstico correto. Demora esta causada, muitas vezes, pela falta de uma compreensão mais aprofundada por parte dos médicos ginecologistas do que seja a endometriose e de suas, muitas vezes dramáticas, conseqüências.

Como sabemos, em grandes centros, como Reino Unido e Estados Unidos, registra-se um intervalo de 7 a 15 anos entre o início dos sintomas da endometriose e o diagnóstico correto, o que faz com que a doença atinja estágios mais elevados. Essa realidade não é diferente no Brasil, onde esse intervalo costuma ser ainda maior.

Esta abordagem, além disso, pretende chamar a atenção para o fato de que, muito além dos sintomas conhecidos, como dores no período menstrual, durante o coito, às micções, às evacuações, sangramentos e infertilidade, que são as suas repercussões físicas, a doença pode causar danos e seqüelas muito sérios à vida profissional, social e afetiva das mulheres, bem como provocar depressão, com conseqüente descuido da saúde, aparência, isolamento, e baixa auto-estima – com inevitáveis repercussões emocionais na sua família.

É sobre os aspectos mais amplos da qualidade de vida de quem sofre de endometriose que quero ora me debruçar.

Eles dizem respeito à saúde compreendida de forma mais global, holística. Saúde relacionada com a busca do bem-estar, da vida que todos queremos ter, e que é mais do apenas sobreviver. Não há novidade nisso, a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde, desde 1947, como “estado de completo bem-estar físico, psíquico e social e não meramente ausência de doença ou enfermidade”.

O atendimento médico, digamos, tradicional, era fazer o diagnóstico preciso e estabelecer as linhas mestras do tratamento medindo-se o resultado por parâmetros objetivos de morbidade e mortalidade. Felizmente, nos últimos anos, esta óptica tem sido mudada, incorporando as variáveis subjetivas dos pacientes, englobando suas percepções no que se refere ao bem-estar e à sua qualidade de vida.

O meu propósito aqui, portanto, é enfatizar que o profissional da ginecologia seja parceiro e cúmplice na busca e na manutenção da saúde de suas pacientes, guiado pelo ponto de vista de saúde como qualidade de vida.

O conceito de qualidade de vida – mais apropriadamente um constructo, ou seja, construído intencionalmente a partir de um marco teórico – vem ganhando importância desde o final da Segunda Guerra e passando por mudanças também: o que era considerado qualidade de vida há 50 anos, quando se dava ênfase a quesitos materiais e socioeconômicos, não é o que se considera qualidade de vida hoje, momento em que aspectos mais subjetivos ganharam relevância. Não há, na verdade, consenso sobre o seu significado, ainda que existam muitos instrumentos disponíveis atualmente para avaliar a qualidade de vida das pessoas.

Existem muitos questionários, muitos deles aplicados a pacientes de endometriose, que estabelecem parâmetros objetivos com o propósito de avaliar o grau de qualidade de vida de quem sofre com uma doença crônica. Um deles, muito difundido, é o questionário The MOS (Medical Outcome Study) 36-Item Short-Form Health Survey, conhecido como SF-36, utilizado por vários estudos importantes. Desde meados dos anos 1970 que avaliações de qualidade de vida, por meio de adaptação desses questionários, vêm sendo incorporadas à prática médica no Brasil.

Foi uma iniciativa importante, já que esses instrumentos trazem inúmeras contribuições para o controle da evolução do tratamento das doenças, podem ajudar a aferir resultados e mensurar o impacto destas sobre a vida das pacientes. Porém, o que quero salientar aqui é que os questionários devem ser apenas mais uma maneira de chegar a informações que tracem um quadro da vida destas mulheres.

De fundamental importância – e insubstituível para o sucesso do tratamento – é a cumplicidade estabelecida no consultório com a paciente numa relação aberta, amigável, afetuosa e franca. A disposição do médico para ouvi-la, partindo do princípio de que todas as queixas são relevantes – porque assim o são consideradas pela maior interessada – pode fazer toda a diferença na qualidade de vida atual e futura desta paciente.

E isso é fundamental, uma vez que estamos falando de uma doença crônica, em que a cura nem sempre é horizonte possível, mas o alívio dos sintomas e a possibilidade de uma vida com um mínimo de limitações.

Uma doença, sempre é bom lembrar, que envolve às vezes intervenções extremamente agressivas sobre o aparelho urinário ou digestivo ou até mesmo sacrificando órgãos como útero, trompas e ovários e cuja origem continua desconhecida pela ciência médica. Não à toa é chamada de “moléstia enigmática”, com mil teorias sobre seu desenvolvimento e nenhuma confirmação.

É papel do médico ser figura acolhedora, solidária, que ouve e ajuda a aplacar a angústia e a dor da paciente. Não apenas com informação – ajudando a desmistificar a doença – mas também com a sua atenção. Sabe-se que, com uma freqüência muito grande, as queixas não são levadas a sério como deveriam, confundidas com reclamações de dores comuns da cólica menstrual, por exemplo.

Assim como é freqüente que vários dos sintomas relatados sejam atribuídos pelo profissional – por negligência ou incompetência – a questões no terreno da psicologia. Portanto, no entender deste médico, estariam fora de seu alcance, de sua área de atuação.

Mesmo fazendo o diagnóstico correto e indicando profissionais de saúde de outras áreas para auxiliar no tratamento, o médico que cuida de pacientes com esta doença não pode ter uma atitude convencional. Deve saber que é procurado justamente porque a paciente vê nele o profissional que entende como nenhum outro o problema. E deve estar preparado para ser solicitado e requisitado com exagerada dependência.

Ele precisa ajudar a evitar sentimentos de frustração e desilusão, bem como cuidar para não criar elementos de culpa, ao propor atividades e comportamentos que esta não tem condições de pôr em prática. Deve abordar com cuidado o planejamento e as perspectivas do tratamento, clínico e cirúrgico, e para tanto ter capacitação na patologia.

Tratamentos equivocados e com longa duração são comuns, podendo eventualmente apenas reduzir os sintomas, sem que a sua verdadeira origem seja descoberta, o que pode agravar esta doença tão impiedosa que é a endometriose.

Além de habilitado na patologia, o profissional precisa dedicar-se à troca constante de informações com outros profissionais de centros médicos mais avançados. Outra atitude importante, cuja adoção recomendo aos médicos que atendem pacientes com esta moléstia, é evitar levar para sua prática clínica os estereótipos, os quais, todos nós sabemos, são disseminados durante a formação profissional, a respeito do “perfil endometriótico”.

Por exemplo, que corresponde ao da paciente executiva, neurótica, obsessiva, exigente. Refugiar-se em preconceitos assim pode ser uma boa maneira de o médico fugir das próprias limitações, uma maneira de disfarçar o sentimento de frustração pela incapacidade em resolver de forma definitiva o problema.

A postura de não ouvir atentamente os relatos dessas mulheres com delicadeza, dedicação e conhecimentos suficientes pode ter como conseqüência – comum no caso das doentes de endometriose – a descrença em relação ao tratamento e, em seguida, o seu abandono. São inúmeros os depoimentos de pacientes que passam a desconfiar de seus médicos, sentem-se incompreendidas e abaladas por verem sua dor subestimada.

Isso ocorre particularmente com aquelas que evoluem com a doença porque muitos dos medicamentos usados acentuam os sintomas mais desagradáveis, como a dor intensa, atrofia dos tecidos genitais (com repercussões na sexualidade), fogachos, osteoporose, alteração no psiquismo e transtornos de humor, levando-as, muitas vezes, ao estado permanente de “TPM”. Ou ainda provocam efeitos colaterais como aumento de peso, seqüelas sobre o aparelho urinário e comprometimento da aparência – com pele oleosa ou ressequida, aumento da pilificação. O que dizer das estratégias cirúrgicas e suas conseqüências? Como cotejar custos e benefícios para tomar a decisão mais acertada?

Portanto, enfatizo, só uma ligação forte, sólida, baseada na confiança e na cumplicidade, entre médico e paciente, poderá ajudá-la a seguir em frente com o tratamento. Esse mesmo profissional que ouve atentamente as queixas e conhece os sintomas da doença deve estar preparado, por exemplo, para lidar com preocupações como a angústia sobre a possibilidade ou não de cura, o medo de ser câncer, dos riscos da cirurgia, da laparoscopia, angústias sobre o dreno, as cicatrizes, a possibilidade de infertilidade.

Enfim, tudo isto dito aqui, na verdade, gira em torno de um único tema: a necessidade de dar importância ao ponto de vista da paciente, para que haja sucesso do tratamento. Essa atitude necessariamente induz à formação de um elo entre médico e paciente. O sucesso, nesse caso, é traduzido em administração e controle da doença, prevenção de incapacidades, restabelecimento da fertilidade (se a idade for oportuna) e aumento da qualidade de vida em todos os seus aspectos.

Gostaria de, a seguir, detalhar questões e queixas mais comuns das pacientes com endometriose extraídas da literatura a respeito do comprometimento de sua qualidade de vida, e que surgem quando elas são ouvidas livremente, não apenas em questionários prontos:

Dor, a grande queixa – as dores, sejam menstruais ou fora deste período, são muitas vezes imensas, incapacitantes. Todas as pacientes costumam considerar as dores o pior da endometriose. Muitos relatos dizem respeito à dor controlando suas vidas e as obrigando a faltar ao trabalho e a deixar de lado compromissos pessoais e sociais.

Aparência física – por causa das dores, a expressão costuma ser afetada. Elas se queixam do aspecto doentio, pálido, de fadiga, de náusea, do ganho de peso, da pele manchada.

Distúrbios funcionais – em função das dores, náuseas, fluxo anormal, incontinência urinária etc, muitas ficam com as atividades funcionais físicas, como mobilidade, apetite, sono, ato de tomar banho, entre outras, comprometidas.

Atividades – as dores e a falta de vitalidade prejudicam o trabalho e outras atividades, como funções domésticas, obrigações com crianças, dentre outras. Ou seja, a mulher com endometriose tem a performance de todos os seus papéis comprometida.

Falta de vitalidade, energia – cansaço extremo, experiências freqüentes de dor e fadiga, além de eventual anemia provocada por perda de ferro nos sangramentos abundantes.

Vida social e isolamento – sem dúvida a vida social é uma das primeiras coisas a serem sacrificadas pela paciente, que acabam optando pela reclusão, com medo de sentirem dor em festas ou locais públicos, enfim, diante de outras pessoas. Muitas se sentem discriminadas porque ouvem com freqüência que só elas não sabem lidar com as cólicas menstruais, enquanto outras mulheres dão conta. Acabam formando comunidades de minorias solitárias, com encontros via internet, grupos de discussão, etc.

A dor controlando a vida – como dissemos antes, a dor é a grande queixa, assim como é o controle que ela exerce sobre a vida de quem tem a doença. Não há como esquecer os sintomas, não há como dominá-los, é grande a sensação de impotência, como se a doença tomasse conta de suas vidas. A dor freqüentemente leva as pacientes para a emergência dos hospitais.

Bem-estar emocional – fica seriamente comprometido, já que as pacientes “não dão conta” da dor, se sentem incapacitadas, se deixam levar pelo desespero, pela agressividade, e têm a auto-estima prejudicada.

Vida sexual – as dores são comuns durante a relação sexual ou depois, variando de desconforto à dor intensa. Há, com isso, muita culpa e sentimento de inadequação e frustração, por não se alcançar uma vida sexual satisfatória.

Emprego – especificamente em relação ao emprego, os problemas acarretados pela doença são inúmeros. As pacientes se queixam de serem incompreendidas pelos colegas de trabalho e pelos chefes. Quando contam com a solidariedade destes, sentem-se culpadas por faltarem muito e não produzirem tanto quanto gostariam. Muitas são obrigadas a faltar uma semana inteira por mês, por causa das dores. É grande a repercussão na auto-estima.

Infertilidade – Elas sofrem muito com o medo de não poder engravidar e freqüentemente entram em depressão por este motivo.

Filhas com endometriose – muitas pacientes temem ver suas filhas desenvolverem a endometriose e repetirem o seu histórico de dor e privações.

Tratamento – há uma grande desconfiança em relação à eficácia dos tratamentos e o medo de a doença voltar a se manifestar. Muitas dizem que os tratamentos não dão resultados, que há muitos efeitos secundários, e reclamam da necessidade de ter de tomar analgésicos como rotina, para prevenir a dor, isso para não falar nos remédios que exacerbam os sintomas da endometriose.

Médico – é grande a frustração das pacientes em relação ao tratamento e à profissão médica. O médico é considerado a principal fonte de suporte emocional para mulher com endometriose, mesmo quando comparado com outros profissionais, por exemplo, os psicoterapeutas. Tratar e confortar a paciente deve ser o lema do médico diante de uma doença e, particularmente, da portadora da doença endometriótica.

Para terminar, quero compartilhar com vocês este depoimento colhido em uma comunidade do Orkut dedicada a portadoras de endometriose. Acho que essas palavras são o depoimento candente sobre o sofrimento dessas pessoas, e dão a medida exata da nossa responsabilidade enquanto médicos:

“Arrancar o meu útero e os meus ovários. Alguém já pensou nisso? Arrancar tudo? Ficar sem vontade de fazer sexo? Achar que não gosta mais do namorado, noivo ou marido e acabar terminando? Ficar deprimida, corpo inchado? A barriga fica tão grande que não conseguimos usar aquela saia de que tanto gostamos e achamos que estamos gordas. E as dores nas pernas? Os enjôos? Medo de menstruar porque imagina que vai doer horrores, medo de ir ao banheiro porque sabe que vai arder ou doer, não conseguir ir à Faculdade, ficar sem vontade de produzir…
É uma crise existencial com o nosso próprio corpo e pensamos: pra que ter isso?? O meu tão desejado bebê vai vir? As questões: pode ser cesariana ou não? o indicado é parto normal…Quando o médico erra no tratamento e temos que procurar outro e a história se repete…E ouvir das pessoas: não pensa nisso!! Esquece!!! COMO?????? ALGUÉM TEM ALGUMA DICA?? SE EU JÁ ACORDO COM DORES???? Eu estou assim hoje… :-(((((((… e não me senti tendo atenção do meu noivo…Dói tudo: o coração, a alma, a esperança, a vontade de viver… é assim…”