J.C. Ismael
A década de sessenta não foi caracterizada apenas pelo culto à violência. Se de um lado, a eleição da ultraviolência como desesperada contestação dos modelos propostos pelo Estabelecimento agitou os meios intelectuais e principalmente os estudantis, a desmitificação do uso da violência começou a ser pregada com idêntico empenho, destronando fórmulas tão antigas como maléficas. Duas dessas fórmulas foram revisadas com grande paixão: a psiquiatria e o parto tradicionais.
O conceito de loucura – e, por extensão, da violência com que os loucos são tratados – foi substancialmente arejado graças aos trabalhos de Michel Foucault, R.D.Laing, David Cooper, para citarmos os nomes mais conhecidos. Pela primeira vez, desde a Idade Média, os loucos passaram a ser encarados como seres humanos credores de afeto e atenção. No lugar dos tratamentos tradicionais, que continuam a ser maldisfarçados rituais de feitiçaria, propunha-se uma nova abordagem das doenças mentais, tendo em vista a liberdade inerente aos ser humano e a falência dos clássicos processos “de cura”. Neles, a violência estava sempre presente, a ponto de se confundir com a própria noção de terapia. Não se podia imaginar que o tratamento da loucura pudesse dispensar o uso da violência – ou da contraviolência – porque a doença mental “violentava” a ordem natural das coisas. Como escreveu David Cooper, na medida em que a psiquiatria representa os interesses ou pretensos interesses dos “sadios”, podemos descobrir que, de fato, a violência em psiquiatria é essencialmente a violência da psiquiatria. A reavaliação da loucura foi, também, uma reavaliação da sanidade e como tal, abalou fortemente os pilares onde se apoiavam comodamente aqueles conceitos tradicionais. Ficou famosa a frase de Cooper onde ele, depois de colocar em dúvida a possibilidade de se estabelecer uma nítida fronteira entre loucura e normalidade, se pergunta se os sadios não serão aqueles que fracassam na tentativa de ser admitidos nos hospícios.
Mas não só a violência da psiquiatria começou a ser duramente atacada. Nos meados da década de cinquenta, um obscuro médico francês, Frédérick Leboyer, propunha a substituição dos estratificados rituais de obstetrícia por um outro onde a parturiente e a criança eram olhados com respeito e carinho. Desde os estudos de Otto Rank, enfeixados no célebre livro Das Trauma der Geburt (“O trauma do nascimento”, 1924) questionava-se o parto tradicional, com sua sempre presente dose de violência: a mãe pressente que vai ser esquartejada enquanto a criança é retirada brutalmente do seu mundo cálido e acolhedor, para ser em seguida sacudida, lavada e enfaixada. Parte-se do mito que, se a criança não chorar ela não é sadia. Daí, as palmadas para provocar o aguardado choro, sem o qual os parentes não comemoram o nascimento. O choro, encarado ingenuamente como sinônimo de perfeita vida biológica, arremata esse ritual bárbaro, despido de qualquer fundamento científico.
Presume-se que só a criança com força suficiente para chorar é capaz de reunir condições suficientes para se libertar da vida intrauterina e adaptar-se biologicamente à vida exterior. Um equívoco que certamente traumatizou milhões de crianças de maneira irreversível. Refletindo sobre esse equívoco, o dr. Leboyer abandonou os médicos padronizados de parto para voltar às sagradas leis da natureza. Antinatural, o parto “civilizado” viola pelo menos duas leis da espécie: a da adaptação lenta a condições estranhas de vida e da espontaneidade com que essa adaptação tem que ser feita.
Na realidade, o chamado parto Leboyer, introduzido no Brasil pelo dr. Cláudio Basbaum, não inova nada, apenas é uma incursão profunda nos íntimos apelos da natureza, que rejeitam toda a parafernália tecnológica, todo mecanicismo e, principalmente, toda a ansiedade.
Às conquistas da revolução industrial veio atrelada uma formidável dose de desconfiança na natureza. À medida que a industrialização se instalava, a fidelidade à emergente tecnologia fez o perplexo artesão perder cada vez mais a fé no instinto, porque a este ele debitava inconscientemente a ausência do progresso.
Assim, também o parto natural foi sendo abandonado, para se adaptar à febre da produção em série, sinônimo de progresso e riqueza. Os desencantos logo vieram, mas não foram fortes o suficiente para demolir a barreira do tecnicismo. Em qualquer caso, voltar ao passado seria mais do que vergonha, seria uma imperdoável traição à sociedade aparentemente progressista.
Partindo do princípio que o momento do parto é o mais importante da vida do indivíduo, o dr. Leboyer nada mais fez do que conferir a este momento a dignidade daquela celebração perdida na noite dos tempos. O ritual da transição, no qual um novo ser humano é recebido por seus semelhantes: por que não celebrarmos este mometo único e irrepetível de maneira menos traumatizante, menos angustiosa possível? Por que a ansiedade em se cortar o cordão umbilical logo que a criança nasce, se este cordão ainda pulsa? Por que afastar a criança da mãe minutos após o nascimento? Por que o indefectível tapa nas nádegas da criança, as luzes fortes na sala, os movimentos bruscos e robotizados da equipe médica? – A única resposta para estas perguntas é a industrialização do nascimento, a perda do sagrado sentido de cerimônia que tem o surgimento de uma nova vida.
Assistir a um parto Leboyer é como assistir a um filme em camara lenta. O médico e os assistentes são os sacerdotes de um templo asséptico que se preparam para reverenciar, numa saudável expectativa, o fruto sazonado da árvore da vida. Esse momento levou milhões de anos para acontecer e não acontecerá jamais de novo. A ele devemos “aquele caminho que nasce com cada homem” como dizem os budistas. Diminuindo ao máximo os traumas do nascimento, o dr. Leboyer confirmou em Paris e o dr. Basbaum em São Paulo que o parto natural tem dado os resultados que se pode esperar quando a natureza não é violentada. As crianças nascidas desse parto têm-se mostrado serenas, ternas, comunicativas. Estarão seguramente melhor preparadas para viver num mundo dominado pela competição e pela violência, do que as nascidas no último estágio da fria linha de montagem em que se transformou o parto industrializado. O grito primordial pode ser um sorriso.