Texto de Marcos Faerman
Ao invés de uma sala de parto iluminada e barulhenta, predominam a penumbra e o silêncio. Ao invés de o recém-nascido ser carregado de pernas para o ar e levado para longe da mãe, ele permanece em seu colo para que ela o acaricie, suavemente. Ao invés de um parto com violência, um nascimento humanizado.
Nascer sem traumas / E já faz 10 anos que o parto Leboyer ajuda a mamães e bebês de todo o mundo
O parto terminou, mas ao contrário do que acontece quase sempre, nas maternidades brasileiras, o bebê está sendo levado para o colo da mãe, depois de ter sido mergulhado numa bacia com água, ali mesmo, naquela sala. E como o bebê gostou de entrar na água! Aí, começa outra coisa ainda incomum porque o bebê não foi apenas aproximado de sua mãe para que ela olhasse suas feições.Não! Ela o aninha em sua pele, e os dois começam a se apalpar – e o bebê, com o instinto próprio de qualquer bichinho, faz uns gentis movimentos em direção de seus seios… Enquanto a mãe começa a fazer uma massagem no bebê, que na maternidade São Luiz, onde tudo isto está acontecendo, é chamada de Shantala. E a mãe está “fazendo a Shantala” em seu filho, claro. Mas o que é Shantala? Ou “quem é Shantala”?
Quem pode mais propriamente responder esta pergunta é o médico francês Frederick Leboyer, que há cerca de dez anos começou a divulgar suas hoje famosas teses sobre parto e violência. Ou sobre nascimento e violência. Frederick Leboyer descobriu muito de suas idéias sobre parto quando, numa viagem à Índia, conduzido por um guru, fez uma viagem de regressão psicológica ao mais fundo de sua história; e nesta viagem, segundo contou, descobriu, inesperadamente, no fim da trajetória, lá onde as águas do poço se encontram com o fundo, no momento zero da existência, que seu parto fora marcado pela violência. E que “parto” e violência quase sempre eram palavras exatamente simétricas.
Frederick Leboyer passou a dedicar sua vida de médico ao que chamou de humanização do nascimento. E suas idéias, contidas no livro Por um nascimento sem violência, traduzido no Brasil por Nascer sorrindo, chegaram ao nosso país pelo médico Cláudio Basbaum, que exatamente há dez anos trabalhou no primeiro “nascimento Leboyer” que provocou muitas polêmicas, inclusive no meio médico. E era o mesmo Cláudio Basbaum que, no começo desta história, conduzia o nascimento daquele bebê banhado logo após o parto e aninhando no ventre da mãe, a quem agora explorava cuidadosamente – e parecia tão tranqüilo nesta operação – tudo de acordo com as lições do mestre Leboyer. A sala do nascimento ainda estava em penumbra porque Leboyer inúmeras vezes advertiu contra o absurdo de se usarem lâmpadas excessivamente fortes na sala do parto porque feriam os olhos do bebê. E a mamãe já se apossava do bebê, e apalpava seu corpo, e nele fazia as massagens… a Shantala… mas o que é Shantala?
Já era de madrugada, o parto tinha acabado, e Cláudio Basbaum podia desvendar-nos o mistério de Shantala. A história começava mais uma vez em uma viagem de Frederick Leboyer à Índia. O médico francês caminhava por Pilkhana, um dos mais sórdidos bairros de Calcutá, quando chegou à associação de caridade Seva Sangha Samiti. E foi no pátio – onde logo chegou – que Frederick Leboyer viu pela primeira vez Shantala. Era uma moça que tinha sido recolhida das ruas de Calcutá, com seus dois filhos. Shantala era paralítica. Shantala estava sentada ao solo fazendo massagem em seu bebê. Frederick Leboyer ficou encantando – conta Cláudio Basbaum. Ficou mudo, observando os movimentos muito lentos e simultaneamente muito fortes que ela fazia com tanto carinho. – Ele viu como isto era bom para esta mulher e para seu bebê e ao mesmo tempo ela falava olhando para os olhos da criança. Ela impressionava todos os sentidos da criança, de forma muito doce e carinhosa. A moça indiana prometeu a Leboyer que deixaria que ele fotografasse tudo isto – cada tempo da massagem, cada momento. E tudo isto foi recolhido, em textos e fotos, por Leboyer, em seu livro Shantala. É quase uma continuidade do carinho que deve ser dado na hora do nascimento.
Equilíbrio, harmonia
Mas, nestes anos, segundo ia expondo Basbaum, o mestre Leboyer tinha levado suas preocupações também para outros caminhos, a ioga e a respiração. Decidido a ioga, ele escreveu um livro chamado Esta Luz de Onde vem a Criança, mostrando a importância do equilíbrio, da harmonia do corpo, da mente – entre equilíbrio perfeito, a respiração e o corpo da mulher. E a importância que esta harmonia perfeita, solidária, traz ao corpo para esta mulher e este bebê. Estas ginásticas, estas posturas – seguia Basbaum – vão agir de maneira muito profunda, harmonizando esta gestante. Outra linha que Leboyer desenvolveu está exposta em seu livro A Arte de Respirar – que Basbaum explica assim:
— Neste trabalho, Leboyer propôs uma alternativa aos conceitos tão arraigados desenvolvidos pelos mestres do sistema psicoprofilático. Ao chamar a atenção para uma maneira diferente de a mulher respirar, eles queriam que a mulher que se esquecesse das suas queixas, dos seus desconfortos, das suas dores. Seria um mecanismo de distração. Na verdade, estas mulheres eram pessimamente trabalhadas pelos médicos, respiravam mal. É muito conhecida a “respiração do cachorrinho”, que não põe o ar nem para dentro nem para fora. Os tais mestres faziam uma respiração que não ia até o fundo. Leboyer não permite mais esta respiração e propõe uma respiração profunda, ioga, abdominal, completamente diferente daquilo que é ensinado na cultura ocidental, e que tanto mal fez, porque, quando as mães respiram mal, as crianças recebem mal o oxigênio.
Bem, foi isto o que aconteceu com o trabalho, com as idéia de Frederick Leboyer. Foi isto o que Leboyer elaborou nestes anos. Mas qual a repercussão de seu trabalho no Brasil?
Cláudio Basbaum vai dizendo que muita gente (incluindo dos meios mais cultos) ainda tem a idéia de que o bebê quando nasce “é um objeto, criatura sem sensibilidade, e que você pode fazer, portanto, o que quiser, porque o bebê não reage – ele é cego, surdo e insensível”. Um exemplo que dá é a forma com que partos são feitos comumente pelos serviços previdenciários – os médicos falam em voz alta, falam irritadamente com as mães (na hora do parto e depois), reclama ainda mais irritadamente se elas gemem ou reclamam de dores. Ali, no geral, a mulher vai encontrar um profissional que nunca viu na vida, e às vezes, este médico está cercado por um ruidoso séquito de acadêmicos de medicina, enfermagem, etc. uma espécie de circo cercando uma mulher desnuda, com as pernas abertas, deitada em uma cama e apavorada.
Um dos pressupostos possíveis de tanto descaso pela mãe e pelo bebê – diz Cláudio Basbaum – é exatamente o de que o bebê seria “insensível”, de que não poderia registrar nada do que lhe acontece, então. No entanto, nos últimos anos, o estudo do psiquismo fetal vem sendo aprofundado – e também não é possível esquecer que um dos discípulos de Freud, Oto Rank, já em 1927 escrevia que o nascimento é algo traumatizante, que marcaria o homem por toda a vida.
— O psicanalista checo Stanislav Grof, hoje trabalhando na Califórnia, realizou duas mil regressões para curar pacientes com distúrbios psiquiátricos – regressões que iam até o momento do parto, e mais… Estas criaturas, que reviam seu nascimento, eram capazes de detectar as coisas mais primárias e profundas que ocorreram, inclusive, na mente da mãe. Como um caso de uma criatura que passou por uma experiência de nascimento regressivo, em que captava o intenso desejo de sua mãe de abortar. Isto havia efetivamente acontecido no começo da gestação… Mais tarde, ele foi questionar a mãe, e ela confirmou que no terceiro mês de gestação tivera a intenção de abortar.
Outro caso é o de uma “nova ciência” – como adianta Basbaum – a psicologia perinatal, que estuda o masoquismo fetal desde a vida intra-uterina até o nascimento. Esta ciência foi discutida num congresso internacional realizado em Toronto, no Canadá, presidida por seu criador, o Doutor Thomas Verny, da Universidade de Toronto. E o que o Dr. Verny diz é que as mães se comunicam com seus bebês… A evolução dos meios de investigação prova que os fetos têm uma capacidade de captação sensorial e mental significativa. Mas qual a relação entre o Dr. Verny e o Dr. Leboyer? Responde Basbaum:
— Thomas Verny escreveu um livro chamado A Vida Secreta do Bebê Ainda Não Nascido, e ali, a certa altura, diz: “Intuitivamente, Leboyer levantou todo um questionamento que hoje vem sendo demonstrado. Realmente, a criança é um ser sensível, realmente a criança é cera virgem, ela precisa, desde quando é um feto e até a hora que nasce, ser muito bem impressionada, para que as suas primeiras memórias sejam boas memórias, para que venham a ter uma impressão muito boa do mundo que lhe espera.
Ritos, tabus
Por tudo isto Cláudio Basbaum vê a necessidade de se recuperar o sentido ritual e sacralizante do nascimento.
— A gravidez, em muitas sociedades primitivas, foi e é acompanhada por um grande números de ritos, tabus, simpatias, que objetivam proteger a criança e toda família contra qualquer malefício. Em muitas sociedades indígenas, o parto é momento sagrado para mulher. O parto era um processo cerimonial em que a mulher se isolava – e não podia ser assistido por nenhuma pessoa. Após o parto, a mãe apanha a placenta, o tapete e aquela terra suja de sangue e vai enterrá-la num lugar sagrado. E nós? É preciso conciliar o progresso científico com a assistência humanizada. Desde que o parto começou a ser visto como um ato puramente médico, o ato de nascer ganhou uma violência inusitada. E tanto mais violentada é esta mulher quanto mais baixa for sua situação social e econômica. Esta é a nossa realidade em certos serviços – mulheres que perambulam de ambulatório em ambulatório, várias delas colocadas dentro de uma única ambulância, ou por falta de vagas ou por falta de documentos, atendidas em série, tendo os pelos pubianos raspados, às vezes, na presença de outras companheiras, nas enfermeiras, diante de pessoas desconhecidas… Ela aceita. Ela não reclama. Ela não sabe quais os seus direitos. E, se ela reclama na hora do parto, alguém diz logo: “Não grita, dona, garanto que na hora em que você fez esta criança não reclamou tanto”. E mais as anestesias desnecessárias, o afastamento do pai, o desprezo pela mãe como pessoa. E, ao nascer, o bebê é tirado da sala dependurado pelos pés, saudado com excessivas manipulações, aspirações pelo nariz, pela boa e pelo estômago, palmadinhas no bumbum, colírios e faixas – e finalmente, em absoluta solidão, é abandonado no berçário com outros bebês, afastados de todos os que o esperam. É a isto que se chama dar à luz. É a isto que se chama nascer.
O som do choro
Mas, nestes dez anos, muitas coisas se modificaram na relação de pais, bebês e médicos no Brasil. E um dos exemplos que Cláudio dá é o do chamado “alojamento conjunto”, já em vigor há alguns anos em lugares tão diferentes como a maternidade do hospital São Luiz ou hospital da Prefeitura de Nova Cachoeirinha. O que é alojamento conjunto?
— Desde os tempos mais antigos – diz Basbaum – o alojamento conjunto era adotado por todos os povos. Ele acabou sendo abandonado principalmente por causa da infecção materna, que naquele tempo era a grande causa das mortes não só das mães como dos fetos. Mas até a metade do século XIX o hábito era o alojamento conjunto: mães e filhos no mesmo quarto, após o nascimento de uma situação excepcional, que procurava evitar que os focos de infecção das mães atingissem os bebês. Acontece que este aspecto já foi superado em nossos dias. Logo, não há mais razão para crianças normais, com nascimento normal, continuarem sendo confinadas nas enfermarias. Eu acho um erro, uma coisa desumana, isolar, nos dias de hoje, uma criança recém-nascida nos berçários.
O alojamento conjunto é, ainda importante para o aprendizado do casal na relação com esta nova criança, principalmente em se tratando do primeiro filho. Infelizmente, a alternativa ao alojamento conjugado é os pais que voltam para casa, três dias depois do parto, com o filho enrolado como se fosse uma múmia… E o pessoal da maternidade dizendo para os pais: podem levar, e agora cuidem dele. E os pais que nunca tinham sequer ouvido o som do choro do bebê, e não conhecem as suas necessidades básicas… Outro aspecto muito importante, para a parturiente é a prevenção da depressão puerperal, tão grave, e que a presença do bebê ao lado da mãe, logo após o parto, pode ajudar a controlar.
Além do mais, como adverte o pediatra Rui Marco Antônio, superintendente da maternidade do São Luiz, 90% das maternidades brasileiras deveria estimular o alojamento conjunto, ainda mais que os berçários exigem uma mão-de-obra sofisticada e incomum, e que muitos deles viraram foco de contaminação de infecções.
— A mãe – explica Rui Marco Antônio – pode até não ter educação ou cultura, mas tem carinho, amor e atenção. A criança que acaba de nascer está muito melhor no quarto, naturalmente orientada pelo pessoal do hospital. É mais saudável e menos arriscado a criança estar no quarto com a mãe do que no berçário – onde, inclusive, enchem a criança de chá, leite e outras coisas, porque é bem mais fácil do que levá-la para mamar no seio da mãe. Esta mãe – nesta situação – passa a achar que a mamadeira é melhor para o bebê, que por sua vez começa a ter dificuldade em mamar no seio. Tudo isto é um crime contra a criança. De qualquer forma, nos últimos anos muitas mães sentem-se estimuladas em amamentar seus filhos no seio. Isto é também uma conseqüência da filosofia Leboyer que foi muito divulgada – algo que influenciou também os médicos.
Esta é também a opinião do médico Paulo Schiler, da equipe de Neoretologia do Hospital e Maternidade São Paulo. Ele acha que o “aleitamento exclusivo nos primeiros seis meses é o prolongamento natural da filosofia daqueles que buscam o parto não agressivo”. Para Cláudio Basbaum, todas as práticas ligadas à filosofia Leboyer, desde a preparação do parto, o parto, as massagens na linha Shantala, o alojamento conjunto influenciam a mãe a ter uma relação com o filho que estimula a amamentação pelo seio. Paulo Schiler explica:
Humanizar o nascimento
— A década de 70 se constitui no período em que no mundo todo campanhas diversas trouxeram a volta da valorização da amamentação do recém-nascido e do lactente. Movimentos em todos os níveis derrubaram preconceitos existentes em relação à amamentação e reafirmaram a ampla e indiscutível superioridade do leite industrializado, do ponto de vista nutricional, imunológico e afetivo – além do econômico e social. Temos hoje um número muito maior de mães conscientes da importância da amamentação do que há dez anos. Nos últimos anos, acrescentou-se a isso um novo conceito fundamental: o de que o lactente, durante os seus primeiros meses de vida, de receber única e exclusivamente leite materno, ficando para depois a introdução dos chás, papas, sucos e sopas – e é isto o que está propondo a Sociedade de Pediatria de São Paulo em seu boletim de fevereiro deste ano. A sociedade defende até mesmo a idéia de que o aleitamento seja iniciado, sempre que possível, na própria sala de parto.
É claro que todos gostariam de saber se uma criança nascida na filosofia Leboyer, com todos esses cuidados, em alguma coisa é diferente. Rui Marco Antônio explica isto assim:
— A gente sente que esta criança desde a sala do parto busca o seio da mãe. A mãe sorri e não quer mais tirar o filho do seu lado. A gente sente que esta criança é mais tranqüila, que ela consegue mamar no seio com mais facilidade. E se fica junto com a mãe, se ela pode alimentar-se na mãe quando tem fome, esta criança consegue tirar o colostro, e atrás disto o leite desce mais rapidamente, e assim o bico do seio estará melhor preparado porque a mãe está mais relaxada. E como esta é uma criança tranqüila, que mama mais facilmente, é uma criança que engole menos ar e absorve menos ansiedade de sua mãe – então, é uma criança que chora menos, que é mais tranqüila…
Outra consequência da expansão das idéias de Leboyer no Brasil – para Cláudio Basbaum – foi o estímulo ao parto natural, principalmente os partos de cócoras e vertical, “porque, ao se deitar a mulher para dar à luz, criou-se uma das maiores aberrações da história da medicina. Desde tempos imemoriais, a posição para parir era de cócoras, agachada e de joelhos… mas deitada?”
O objetivo final de Frederick Leboyer e dos seus seguidores?
— O que se trata – conclui Cláudio Basbaum – é de se criar uma situação afetiva para o nascimento, humanizar o médico e a sociedade inteira, para acolher o recém-nascido… neste momento em que nos defrontamos com o milagre da vida, até hoje não explicado.