REVISTA DA SOCIEDADE PAULISTA DE ENDOSCOPIA EM GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA
Claudio Basbaum
É incrível, mas já se passaram 40 anos! Estávamos no final de 1963. Local: DOG – 10º andar do Hospital das Clinicas em São Paulo.
O jovem recém formado na Universidade do Recife chegava ao mais importante centro médico do país. Lá encontra aqueles personagens cujos nomes só conhecia pelos trabalhos publicados: Medina, Neme, Gallucci, Salvatore, Bozzini, Goffi, Sampaio Goes, Halbe e outros que muito me ensinaram e que, se já me trai a memória, com certeza estão indeléveis na minha saudade e gratidão. Um dia, vejo na programação cirúrgica: Laparoscopia. Como será isso? Entro numa pequena sala de menos de 10 m² com um janelão basculante cujos vidros estavam pintados para reduzir a luz ambiente. Surge o Dr. Paulo Gorga, grandão, careca, bonachão; empunhava o instrumento médico que eu via pela primeira vez: uma óptica laparoscópica, com lâmpada incandescente em sua extremidade. Era a minha estréia no fantástico novo mundo da endoscopia ginecológica. Tudo ainda era muito primário, equipamentos, instrumentos e até o reconhecimento das lesões encontradas. Uma mesa cirúrgica com poucos recursos e lado a lado, dois cilindros de gás, um com oxigênio para a anestesia e outro com CO2 para a laparoscopia; este era o pano de fundo onde tudo iria acontecer. Uma jovem paciente com “ESCA” (esterilidade sem causa aparente) vinha para uma avaliação. Após infusão venosa de thionembutal e curare e fixada a máscara de oxigênio, o pneumoperitônio é criado através de uma agulha de ráqui acoplada a uma extensão de borracha que conduzia o CO2 diretamente do cilindro – e, que perigo! – sem qualquer mensuração de fluxo ou pressão intra-abdominal. O “controle” era feito no “olhômetro” observando-se a distensão e percutindo a parede abdominal.
Com aquela pálida iluminação muito se olhava e muitas vezes pouco se via – “cuidado para não encostar a lâmpada nos órgãos. Pode causar queimadura” – alertava o Gorga. Mas, mesmo assim já se prenunciava ser um procedimento importante, graças ao reconhecimento sob visão direta de tantas patologias – obstruções tubárias, hidrosalpinge, aderências, ovarias policísticas, processos inflamatórios, que tantas vezes eram na verdade imagens de endometriose e que até então pouco conhecíamos.
Estes primeiros passos só aguçavam minha curiosidade e deixavam “um gostinho de quero mais”. Estávamos no ano de 1966 e recebo a resposta positiva ao meu pedido de estágio com o Profº Raoul Palmer no saudoso e hoje demolido Hôpital Broca da Faculdade de Medicina de Paris. Era como ir a Roma para ver e conviver com o Papa, para aperfeiçoar-me naquilo que o mestre francês chamava de celioscopia. Tempos lindos e produtivos! Ali, pude vivenciar a criação e o aperfeiçoamento de vários instrumentos e aparelhos, muitos deles idealizados pelo Profº Kurt Semm e que vinham da Alemanha para a França a título de experimentação nas mãos do chamado “pai da laparoscopia”. Junto comigo, médicos de todo o mundo, inclusive do Brasil como Donadio e Wulkan acotovelavam-se em torno daquela criatura encantadora e competente. Quanta coisa nova! Fonte de “luz fria”, cabo de fibra óptica, agulha de Palmer para pneumoperitônio, pinça de Caplier para salpingoplastia, trocartes com mandril de ponta aguda (para usar até passar o plano da aponeurose) e romba (para adentrar ao peritônio), pinça-biopsia de Drapier (excepcional para ressecar belos fragmentos de ovário e inclusive, cauterizar o leito sangrante, já naquela época! Também se fazia documentação fotográfica e até mesmo filmávamos o ato com câmeras de 8 e 16 mm; em 1967 já usávamos o Super 8 (o problema é que o filme tinha que ir para revelação, o que demorava vários dias para ser vista).
A “celioscopia” era indicada em várias situações, entre elas para o diagnóstico de prenhez tubária íntegra, fazer seleção prévia para salpingoplastias, estudos ovariano nas espânio/amenorréias, na dismenorréia rebelde, na busca da endometriose, nas esterilidades sem causa aparente e outros mais.
Fazíamos também algumas “intervenções” tais como coleta de líquido peritonial, punção de cistos ovarianos, biopsia e secção de aderências, cromotubagem com solução de Azul de Metileno, esterilização tubária com alça de diatermia a qual também era utilizada para eletrocoagular “nódulos anormais”.
Três a quatro pacientes por dia aguardavam enfileiradas em macas na ante-sala. A anestesia era “Pentotal/Curare”. Com destreza o “gordo”, como chamávamos o mestre, perscrutava toda pelve e a óptica nos era oferecida de vez em quando; para a época, que nitidez de imagem! Após cada exame (afinal o que fazíamos era a laparoscopia diagnóstica, completada por procedimentos menores), o “grand-finale”: o retrato falado “a crayon” do que havia sido visualizado e assim foi por muito tempo…
1967. Retorno ao Brasil. Carrego debaixo do braço o primeiro equipamento para a realização da laparoscopia com “luz fria e fibra óptica” que eu havia comprado na Maison Guerin, Acompanhado do “monsieur” “Palmer”. Ainda tenho tudo guardado até hoje.
Passo então a dividir minha atividade endoscópica entre o Serviço de Ginecologia do HC e o da Faculdade de Medicina da Unicamp para onde fora convidado pelo Profº Bussamara Neme e pelo meu parceiro amigo e então Chefe de clínica, Profº José Aristodemo Pinotti.
Em pontos isolados surgem outros “bandeirantes” da laparoscopia como Maillard no Rio Grande do Sul e Pedrosa no Rio de Janeiro. Éramos muito poucos naquela época. Mais vinte anos são decorridos e em nosso país a laparoscopia permanecia como que estagnada, limitada. Faltava alguma coisa…
Na Europa entretanto, principalmente na Alemanha com Kurt Semm e na França com Bruhat, Manhes, Mage, Wattiez, figuras que foram fundamentais na nossa formação endoscópica, importantes passos eram dados e respaldados no desenvolvimento tecnológico ligado a medicina, sobretudo nos campos da óptica da iluminação e dos novos equipamentos e instrumentos. A câmera de vídeo incorpora-se ao arsenal. Transferimos o campo cirúrgico para o monitor de TV. Não mais palpamos ou tocamos os órgãos com as mãos mas sim através de delicados instrumentos com elegância e precisão nos gestos. Nascia a videolaparoscopia operatória. Com a mesma importância, passos de gigante eram dados na histeroscopia, graças a capacidade criativa de Jacques Hamou em Paris e o empenho e dedicação efetivos de Luca Mencaglia e Carlo Tantini na Itália.
Paralelamente, a anestesiologia também progredia, trazendo assim maior segurança aos procedimentos e atendendo às novas exigências da mulher contemporânea nas decisões sobre seu corpo e sua saúde. Todas essas transformações provocaram mudanças consideráveis nos tratamentos e no modo de operar, agora, sob um ângulo de visão mais conservador e menos agressivo. Como dizia Manhez – é a cirurgia do respeito e que pretende preservar o “poço da fertilidade”. No bojo deste processo segue a escola americana com importantes nomes tais como Nehzat, Reich, Childers, Liu e outros. Na América do Sul desponta Videla-Rivero, pupilo de Semm, e responsável pela endoscopia ginecológica na Faculdade de Medicina de Buenos Aires. É lá que fui dar os primeiros passos na videolaparoscopia cirúrgica. Desde logo senti que era a hora de ir mais adiante, ir à fonte sorver destes novos conhecimentos. Itália, França, Bélgica, EUA nos abrem novos horizontes. Embasado neste aprendizado, em 1989, no Hospital São Luiz em São Paulo tivemos a primazia de participar deste trabalho pioneiro executando as primeiras videolaparoscopias e videohisteroscopias cirúrgicas juntos com outros ainda pouco entusiastas. Começava o “boom” da laparoscopia. As cirurgias minimalistas, mini-invasivas como passaram a ser tratadas começam a migrar paulatinamente pelas mãos dos “pioneiros” para dentro das universidades e assim foi por exemplo na Faculdade de Medicina do ABC com Caio P. Barbosa, na Faculdade de Medicina da Santa Casa através de Donadio, Aoki e Ayrosa e com Ueno e Santos no Hospital das Clínicas, todos em São Paulo. Na histeroscopia surgem expoentes como Walter Pace em Belo Horizonte, Simone Machado na Bahia, Kleber Morais em Natal, Luiz Cavalcanti em São Paulo, entre outros.
Em complexidade crescente e de acordo com nossa curva de aprendizado ousamos cada vez mais – adesiolise, ooforoplastia, ooforectomia, miomectomia, tratamento da prenhez tubária, inclusive conservadora, tratamento extensivo da endometriose, histerectomia total e subtotal, até atingir nos dias de hoje metas de alta complexidade, como o tratamento da endometriose severa profunda com rebaixamento de reto, correção de distopias genitais e incontinência urinária, sigmoidectomia parcial de causa endometriótica e etc.
Pela videohisteroscopia passamos a ver e tratar patologias até então inacessíveis a nossa vista e as nossas mãos: pólipos, miomas, sinequias, septos, correção do sangramento uterino anormal, com a ablação endometrial que veio evitar tantas retiradas desnecessárias de úteros.
Sabemos que nem sempre o que se pode é o que se deve fazer. Qual será o limite? Como será o amanhã? Seja como for, sinto-me um privilegiado por ter contribuído para desbravar a laparoscopia em nosso meio desde os tempos mais românticos e de ainda poder estar participando ativamente tanto nas videocirurgias quanto na formação de jovens profissionais dedicados a esta “nova” via cirúrgica, para quem posso contar saudosamente tanta coisa e dizer, pois é, “meninos, eu vi!…”