Nascer sorrindo

Claudio Basbaum

I have no name;
I am but two days old.
What shall I call thee?
I happy am,
Joy is my name,
Sweet joy befall thee!

William Blake, “Infant Joy”

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Se um bebê de dois dias, nascido dentro do aparato tecnológico e pseudamente científico, pudesse falar, ele certamente não seria o personagem dos versos de Blake: definitivamente alegria não será o seu nome. Isto porque o parto, apropriado indevidamente pela Medicina, tornou-se um ato de violência extrema contra o bebê e a mãe. Por que o ritual do nascimento afastou-se tanto da natureza, a ponto de causar traumas que a criança guardará para o resto da vida, para não falar nas sequelas emocionais deixadas na parturiente!? Várias têm sido as respostas propostas a esta questão, mas podem ser enfeixadas numa única: desde que o parto passou a ser visto como um problema médico, o ato de nascer ganhou uma violência inusitada, porque a própria cena montada pressupõe violentação, e, por que não dizer, violência. Senão, vejamos: sala cirúrgica “fee-ricamente iluminada”; conversas em altas vozes entre os membros da equipe; anestesia com frequência, desnecessária; afastamento do pai, desprezo pela mãe, enfim, sem “clima” condizente com aquele extraordinário e irrepetível momento. E quando a criança nasce, a cena de violência se aguça: o recém-nascido é retirado pelos pés, saudado com excesso de manipulações, e isolado numa sala cheia de outros bebês. É a isto que se chama nascer! É a isto que se chama dar à luz!

Despojado da penumbra e da tepidez do útero – sua primeira e mais verdadeira casa – o bebê é integrado, socialmente, no mundo que o espera, de maneira áspera, como se fosse um arauto de más notícias. Não é acolhido, nem reverenciado como viajante que chega exausto, herói da mais bela e enigmática das viagens, e antes como peça de fastidiosa linha de montagem.

Muito já se escreveu – e ainda será escrito – sobre o trauma do nascimento. Além da obra clássica de Otto Rank, muitas são as linhas da psicologia moderna que responsabilizam o momento do parto como aquele que devastará, para sempre, o equilíbrio emocional da criança. Freud afirmou categoricamente que as “fobias enigmáticas” que aparecem na tenra infância têm origem na situação de extrema angústia, gerada pela perda do objeto amado, que sentem os recém-nascidos, ao se separarem de suas mães. Não ocorreu ao pai da psicanálise que esta sensação de perda, de vazio, de desamparo, pode ser minimizada, e até mesmo anulada, se o ritual do nascimento for radicalmente alterado. Ao afirmar que a angústia é uma defesa contra os sinais de perigo, e que aparece no recém-nascido justamente porque realmente existem, Freud estava, provavelmente sem o querer, engrossando as fileiras dos adeptos do “parto humanizado” ou do “nascimento sem violência” (vide capítulo HUMANIZAÇÃO EM PERINATOLOGIA).

A criação de uma vida nova é momento mágico, que jamais se repete. Cumprindo a fantástica missão que a espécie lhes impôs, o espermatozóide e o óvulo são os personagens primevos da história humana. Eles se interpenetram e se fundem, dando origem à vida, e, neste momento único, escrevem o primeiro capítulo do nosso destino.

Até o momento do nascimento, a única “realidade” do feto é o universo vibracional da mãe. O nascimento sem violência começa antes do parto propriamente dito. Começa desde o instante em que a mulher sabe que está grávida. Ela precisa manter, além de hábitos saudáveis, uma atitude positiva, segura. Tem de ser instinto puro, indene das máculas da chamada “civilização”. Há de sentir-se sacerdotisa de uma hierofania que inicia a nascer no seu interior, e cujo ápice é a celebração da festa do nascimento de um novo deus. E é assim: cada criança que nasce é a perpetuação do projeto divino. Este projeto não será realizado mais plenamente sem violência? Perdeu-se o sagrado sentido da cerimônia sagrante do surgimento de uma nova vida? Cada novo ser chegado, inocente e puro, traz promessa de perfeição.

Ao nascer, o bebê começa a viver sua grande aventura. Peguemo-lo pela mão, gentilmente. Murmuremos doce convite para que ele compartilhe conosco a casa solitária que é a Terra, o único planeta, talvez, habitado do sistema solar, na esperança de que esta indefesa criança seja mais um consolo a amenizar nosso cósmico isolamento.

O parto é um momento crítico, desconhecido, sem controle, irreversível. O obstetra tem obrigação de permitir à parturiente participar, com liberdade e lucidez, na experiência do nascimento.

Este momento pertence-lhe e a seu filho, muito mais do que ao médico e sua equipe. Dar à luz, nos dias de hoje, é submeter-se a uma apropriação tecnológica indesejável, com a qual se transformou o mais singelo acontecimento da vida humana numa intrincada manobra cirúrgica.

Antinatural por excelência, o nascimento chamado de “civilizado” viola pelo menos duas leis da natureza: a da adaptação lenta a novas condições de vida e a espontaneidade com que esta adaptação tem que ser conseguida. Ao nascer, o bebê está, há muito, estruturado: sensitiva, afetiva e organicamente. Devemos respeitá-lo, como pessoa que é, não lhe impondo, súbita e agressivamente, o seu novo mundo. Saber respeitar e compreender a agressão que o nascimento pode suscitar é tarefa primordial do obstetra**. O nascimento é, já por si, um acontecimento traumatizante. Por que não suavizar o trauma, e, antes, aumenta-lo inutilmente?

É necessário entender que o bebê “quer” ser tocado, acariciado. Quer que o seu corpo seja explorado: ele o “dá” para isso. A falta de aconchego e de embalo, nessa fase primordial, deixará, sem dúvida, marcas no seu desenvolvimento afetivo.

Ao dar à luz pelo parto natural, a mulher emite todos os sons típicos de um ato do mais profundo e intenso amor. Geme, se contorce, resfolega, contrai-se, cerra as mãos, exatamente como se a cena fosse a expectativa de um intenso e múltiplo orgasmo. Trata-se, porém, de orgasmo diferente, que transcende o prazer carnal. É orgasmo de que brota um novo e assustado ser, que pede para ser recebido com amor, carinho, dedicação. Para este tímido e desajeitado viajante devemos preparar um cenário que o aqueça, desangustie, proteja.é poupando a criança do terror, que se torna o seu nascimento um instante encantado. No feto termina a evolução da espécie humana; ele é a ruptura ocorrida no início do paleoceno, que, partindo dos primeiros mamíferos, gerou os primeiros primatas, os primeiros antropóides, os primeiros hominídeos. Respeitemos, no mínimo, esta corrida evolucionária. Recebamos o bebê, emigrante do fundo da noite dos tempos, que nos chega depois de percorrer a mais formidável das jornadas.

O cordão umbilical: por que cortá-lo apressadamente? O cordão umbilical é o símbolo pulsante de uma unidade que se está acabando***. Acompanhemos este morrer, de maneira religiosa, não tecnocrata. O cordão “tem” que ser cortado. Mas, antes disso, por que não dar, como se diz, “um tempo”: o tempo para que sua função vital e nutridora se processe até o fim, como a natureza determinou.

O ventre da mãe: a viagem de dentro do ventre pode só terminar harmonicamente sobre o ventre, jamais num impessoal berçário. Assim, devemos colocar o bebê sobre o ventre daquele organismo que, durante meses, foi sua casa. É mais harmonioso, mais coerente e o mínimo dos direitos de quem nasce. Para um mundo que cada vez conhece menos a paz, o bebê é um privilegiado: pode ainda experimentá-la intensamente assim que nasce; basta que deixemos de ser beligerantes, que deixemos de lutar contra as leis da natureza. Quando o recém-nascido contacta a pele e o seio da mãe, assistimos deslumbrados a toda uma série de sons e movimentos rítmicos, do corpo da mãe e do corpinho da sua cria. Tudo se move junto, em silêncio, em paz e confiança. O “banho”: na etapa seguinte, oferecemos ao bebê uma imersão em água morna, verdadeira sensação de “volta ao útero”, fazendo-o reencontrar o estado anterior, tão familiar; de olhos abertos relaxa completamente, saboreando gostosamente a nova situação. A resistência às mudanças de atitude, tão comuns nos seres humanos, vem impedindo que jovens médicos, em formação, desabrochem mais amplamente a sensibilidade, para com justo ecletismo encontrarem nova razão do exercício da arte obstétrica.

No momento soberano da acolhida do bebê, a atitude do obstetra deverá ser liberta, inocente, apaixonada, isenta de angústia e pressa; não cabe pressa diante desse instante tão mágico da natureza!

Sabemos que as modificações que propomos ocorrerão, lentamente. Mas o primeiro passo já foi dado, visando restabelecer o primado do parto natural (vide capítulo específico neste livro), sem violência, contribuindo com isso para a melhor qualidade da vida emocional das gerações futuras. Frederick Leboyer é o principal “cruzado” nesta caravana de pessoas que acreditam que o restabelecimento da naturalidade do nascimento, sem as desnecessárias distorções cometidas pela Medicina institucionalizada, poderá mudar a face do mundo. O bebê que nasce feliz forjará a nova imagem do mundo. Só depende de nós.

Bibliografia

1. CALDEYRO-BARCIA, R.: Physiological and Psychological Bases for the Modern and Humanized Management of Normal Labor. Lecture presented at the Symposium on “Recent Progress in Perinatal Medicine, Tokyo-Japan; Scientific Publication n° 858 of the Centro Latino-Americano de Perinatologia y Desarollo Humano, Motivideo, Uruguay, 1979.
2. LEBOYER, F.: Nascer Sorrindo, 7ª edição, Editora Brasiliense, São Paulo, 1981.
3. OLIVEIRA, I.: Parto domiciliar e hospitalar realizado por Parteira no Município de Gravatá, Tese de Pediatria, Recife-Pernambuco, 1980.